27 outubro 2005

Prematuro
Crônica de uma morte anunciada



Antes da hora
(29.03.2005)
Muito escuro. Uma agitação que não consigo compreender bem. Sinto um relativo mal estar, alguma dor. Há uma força que insiste em me empurrar para baixo, comprimindo meu corpo.
Sinto agora uma enorme falta de ar... e sem saber o motivo me vejo forçando minha cabeça como se isso fosse resultar em algum alívio. Alguma luz se aproxima, ainda tenho pouco ar nos meus pulmões e o desconforto aumenta, aumenta a luz e ouço um barulho, vozes, muitas vozes. Agitadas, ouço apitos finos, máquinas e umas mãos fortes me puxam para fora! De repente já não vejo mais nada! Adormeço.


Primeiras Horas
(29.03.2005)
Estou cheia de fios. Ainda escuto o barulho dos apitos finos. Constantes. Mas já me sinto sossegada e aquecida.
Uma mão me toca levemente. É ela! minha mãe. eu não vejo seus olhos mas sinto seu coração bater nas pontas do seus dedos sobre o meu corpo. Nos movimentos leves, ela me diz o quanto me ama. O quanto quer que eu viva. Que eu lute! Escuto o que o seu coração me diz e sei a cada minuto que passa quem ela é. Um mulher forte. Embora de mãos pequenas ela me parece grande. Decidida. E sinto, como um bálsamo que me alivia, a sua capacidade enorme de amar. Sinto este amor por mim e pelo mundo. Sinto a sua clareza, sua serenidade. Ainda sinto seu coração batendo na minha pele e os seus olhos continuam olhando ternamente pra mim. Sei que sua paz e o seu amor me fizeram adormecer. sonhei com minha mãe por algum tempo.
Novamente sinto mãos em meu corpo. Seria ela outra vez? Não! Estas mãos me tocavam de maneira diferente. Havia um coração também nas pontas dos dedos, mas batia em ritmo diferente. Não me passava segurança, parecia assustado ou confuso. inseguro? Sou tão pequena ainda não sei sentir tudo muito bem. Os olhos não me olhavam diretamente. Pareciam olhar sempre para o lado. Sentia que era alguém que me queria, que me amava e embora não soubesse claramente me dizer, eu sabia que ele também queria que eu vivesse! Mas, era como se eu não pudesse ver ao certo quem era! Tinha uma maneira diferente de sentir emoções! E me parecia ser tantos ao mesmo tempo. Seria ele?! Sim, era o meu pai! O meu pai! Saiu antes que eu tivesse tempo para me acalmar e outra vez adormecer. Voltaria?



Meu quadro de luzes
(30.04.2005)
Talvez tenha pouco tempo para ter a exata noção do que se passa comigo. Talvez até não saiba o que sou. Ou quem sou. Até agora sei que muitas mãos tocaram meu corpo, porém apenas duas diferentes mãos me tocaram além deste pequeno corpo frágil que pareço ter. Não sei das luzes naturais que possam existir nesse mundo. Sempre há luz forte sobre mim, sinto que essa luz me aquece. Agora, neste momento, sinto algo que nunca senti antes. Medo. Tinha medo de não consegui vencer. De não consegui lutar, como era o desejo do coração da minha mãe. Estranho era saber, que não tinha medo porque me achava fraco mas por saber que algo era mais forte que eu. E consegui, apesar de tudo, compreender que havia um lugar muito maior do que aquele que eu estava. Um lugar que tinha que está sintonizado comigo. E eu, apesar de tantos fios, apitos, mãos e luzes não me sentia ligado a este mundo. Estava solta. Desprendida, como uma folha que se vai com o vento do outono. Outono. Ouvi tantas vezes a minha mãe falar deste outono e deste vento. Foi, no minuto seguinte que senti algo forte batendo dentro de mim. Parecia um tambor. Tum Tum.. forte. Cada vez mais forte e uma dor enorme tomou conta de mim. Do meu peito. Senti frio. E um apito ensurdecedor soou como um eco. Correria. Mãos , mãos, mãos sobre mim! Mas não me tiravam a dor. Porque? Ajudem-se.. isso dói! Fui ficando assustada. Nenhuma agitação igual aquela havia acontecido dentro da minha casinha pequena e branca. Dor. dor. Já agora o apito parecia ficar mais baixo, mais baixo... e uma luzinha, que antes pulava de um canto a outro, subindo e descendo, dentro de um quadro ao meu lado, ficou como se fosse uma linha reta. Perdi os sentidos. Perdi-me de mim?!
Despertei como se estivesse caindo de um penhasco. Tinha o corpo no ar! Meu quadro tinha voltado a ter sua luzinha subindo e descendo. E os apitos pareciam todos como antes. Um cansaço enorme tomou conta de mim. Mas aquelas mãos suaves, as mãos da minha mãe estavam sobre o meu corpo outra vez e eu já não sentia medo algum.



Mergulho
(01.04.2005)
Não sei o que se esconde por trás dessa minha aparente fragilidade. Se ao mesmo tempo algo me faz sentir forte.
Então, quis me conhecer. Mergulhei em mim como quem mergulha no fundo do mar em busca de um tesouro. E aqui e ali fui recolhendo pedaços de mim que eu ia unindo como a um quebra-cabeças. No final eu estaria, seria inteira.
As primeiras imagens surgem diante de mim. E eu os vejo. Os reconheço. Eles se descobriram, se encantaram e urgentemente se entregaram. Juntaram verdades e mentiras, certezas e incertezas, coragem e medo, lágrimas e sorrisos. Esqueceram quem são e consumiram-se nessa urgente paixão. Sou essa paixão. Esse amor iniciado.
Agora compreendo a minha natureza forte, recheada de emoções e unida por um fino frio frágil, pronto a se romper. Existo. Sou uma realidade repleta de emoções e sensações. Minha fragilidade é tão real quanto a minha fortaleza. E sinto que meu desejo de ficar é tão forte quanto partir. Essa tem sido a minha luta. Manter-me inteira apesar do frágil fio com que fui tecida.


Meu momento de paz
(02.04.2005)
Não. Não é uma luta que tenho que travar. O que me mantém presa a este fio é o meu desejo de compreender a minha existência, a minha verdade. O desejo de sentir as mãos da minha criação sobre mim e ter tempo de olhá-los com ternura, de compreende-los, reconhecendo-me em cada um dos toques de suas mãos sobre o meu corpo. Sei que eles sabem que ainda estou aqui por isso. Tenho que me consumir, preciso me consumir reconhecendo-me desde o princípio. Sentindo-me. Sendo real, vivendo e consumindo-me com a mesma urgente paixão que me fez existir...
Sinto um enorme amor por mim e por eles. Dos tempos que me recordo de mim este é o meu maior momento de paz.


Últimas horas
(03.04.2005)
Já algum tempo que essa paz tomou conta de mim. Cheguei a pensar que nunca a alcançaria e que minha fragilidade fosse me vencer. Mas já agora, neste momento, sou mais forte que tudo. Mas percebo uma certa inquietação das pessoas a minha volta. Muitos me tocam e me olham. Reviram-me. Será que estão procurando pela minha tranqüilidade? Mas por que gostariam de tirá-la de mim? Estou bem! Tento dizer-lhes. Mas eles não me entendem.
Tenho tido sonhos lindos. Sonhos de liberdade. Sinto que tenho asas. Que posso voar! E não raro contemplo um jardim fantasticamente colorido. Deve fazer parte dessa sensação de paz e tranqüilidade que me encontro.
Outra vez ele me tocam, ajustam os fios em meu corpo, injetam líquidos em minha veia. Eu estou bem! Mas eles não me ouvem!! Não me entendem?!
Correria e gritos! Estão loucos?
Até meus pais estão aqui. Eu os vejo. Vejo os olhos da minha mãe... tristes. Os olhos do meu pai, assustados. Como é bom vê-los. Eles tocam-me, acarinhando-me. Como é senti-los assim. Nosso momento de ternura. De amor. Só mesmo isso me faltava. E eu, não compreendo muito bem como mas, eles entendem-me. Sentem o que sinto e os olhos tristes e cheios de lágrimas da minha mãe ficam serenos. Os olhos assustados do meu pai tornam-se cheios de esperança. Talvez estivéssemos compreendendo e aceitando as nossas limitações, os nossos erros e tivéssemos prontos para nos dar uma nova oportunidade.
Que paz eu sentia! Absoluta. Só rompida por alguns segundos quando um apito estridente soou perto de nós. Como que por impulso, minha mãe retirou-me deste lugar e me tomou nos braços. Apertou-me contra o peito. Meu pai tocou meu rosto. Alguns olhares os repreenderam mas eles mantiveram-se firme. Ela tocou em meus lábios e acho que sorri. Sorrimos todos nós por entre as nossas lágrimas e nossa estranha paz.
O apito. Tão alto, estridente.
Ao lado, meu quadro de luz agora tinha de fato uma linha reta! Contínua. Sinto me invadir o cheiro das flores coloridas do meu enorme jardim!

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