31 janeiro 2008

CARNAVAL

Chega o Carnaval e, com ele, a tristeza de palhaço vendo o circo pegar fogo. Fico surdo aos tamborins, cego à desnudez das mulheres, de nariz tapado ao cheiro ácido do suor quente.

É outro o Carnaval que tanto anseio. Não o de salões abarrotados, gritos desconexos, desfiles que disfarçam de luxo a indigência do povo. Quero a alegria d’alma, arlequim bailando em meu espírito, o odor suave da colombina afagando-me os cabelos . Quero a serpentina enlaçando fraternuras, confetes chovendo estrelas nos telhados de meus sonhos, e um vento primevo a arejar meus espaços mais íntimos. Quero o rei Momo premiando o meu país de farturas e o corso da alegria atravessando as ruas dos meus passos.

Não irei a bailes ébrios de álcool, nem me atarei a cordões que me algemem a liberdade. A mim pouco importa que, no Carnaval, homens se fantasiem de mulheres e mulheres vistam-se como homens. O que ambiciono é mais ousado: virar-me pelo avesso, trazer à tona aquele que sou e não tenho sido. Quero travestir-me de mim mesmo, da minha face mais real e que, no entanto, trago mascarada nos demais dias do ano. É a loucura, essa loucura do divino do qual sou feito, é ele que pretendo expor nas passarelas, nu, sem fantasias, à imagem e semelhança do que fui pensado e querido.

Não encharcarei minha solidão de cervejas, nem mergulharei no mar de espumas brilhantes e ilusões estéreis. Serei insensatamente o clone de mim mesmo, arrancando-me novo de velhas células.
Porta-bandeira atrevido exibirei na escola de samba uma por uma de minhas quimeras, tão palpáveis quanto o amor que dói no peito. Rasgarei a minha fantasia e, com os trapos, tecerei um tapete de júbilos, sobre o qual dançarei o mais ousado dos frevos, até o amanhecer de minhas esperanças.

Quando soar o último choro da cuíca e o silêncio imperar no couro dos tamborins, contemplarei os foliões vestindo a desfantasia de uma realidade que é a deles: a rainha desencantada em empregada doméstica; o mestre-sala em camelô; a sereia em auxiliar de escritório; e o mais belo Apolo dos carros alegóricos em vendedor de enciclopédias. Condenados à desalegria de um cotidiano árduo, estarão todos envoltos no sonho de uma dignidade que só a justiça instaura. Recolhidas as baterias, a festa se transfigurará em fé.


Fonte: BETTO, Frei. A arte de semear estrelas.
Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Nenhum comentário: